ARTIGO

"Não quero abraçar o meu pai", por Arlicélio Paiva

Cultura&Realidade - 07 de Dezembro de 2019 (atualizado 07/Dez/2019 09h55)

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Arlicélio Paiva, professor doutor da UESC, Ilhéus, Bahia. - Foto: Ilustração

 

Não Quero Abraçar o Meu Pai

Por Arlicélio Paiva

O abraço é descrito no dicionário como sendo a “Ação de envolver algo ou alguém com os braços, mantendo essa pessoa ou coisa próxima ao peito”. Porém, ganha muito mais sentido quando é expressado pela poesia.

O poeta João Doederlein descreve o abraço como “O golpe mais efetivo contra a saudade, é quando a gente se encaixa perfeitamente um no outro, quando a minha alma beija a sua. É a ação de encostar um coração no outro, a dívida mais gostosa de pagar, a melhor forma de salvar alguém da tristeza. É sorrir com os braços”.

A poesia de Antonio Gala proporciona dramaticidade ao abraço, ao afirmar “Que nenhum juiz declare a minha inocência, porque neste processo a longo prazo procurarei unicamente a sentença da prisão perpétua do seu abraço”.

Anne Frank registrou em seu diário a importância do abraço para manifestar o carinho, de forma silenciosa, quase proibida – “Os abraços foram feitos para expressar o que as palavras deixam a desejar”.

Não tenho dúvidas a respeito da importância do abraço para transmitir boas energias, compartilhar afetos e manifestar o amor de forma contundente. Então, por que eu não quero abraçar o meu pai? Justamente ele, uma das pessoas mais importantes para mim!

Quando assinamos o Termo de Outorga da Vida que nos foi concedido pelo Ser Superior, existia uma cláusula, muito bem clara, que tratava a respeito do retorno. Embora todos saibam disso, é natural que se fique com muito pesar na hora em que algum conhecido tem que cumprir o estabelecido, sobretudo quando ocorre de modo inesperado ou em idade jovem. Em outras palavras, é compreensível que a tristeza se estabeleça quando alguém próximo de nós parte do plano físico para o plano espiritual. O meu pai já cumpriu a cláusula do retorno. E foi muito pesaroso para mim!

Não é necessário esperar por primeiro de janeiro para se expressar os sentimentos de repeito e apreço universais! Quem disse que a demonstração de carinho e amor pela mãe só deve ocorrer em maio? Será que os namorados só devem compartilhar declarações de amor em junho? Por que tem que abraçar e beijar o pai apenas em agosto? Ou deixar outubro chegar para celebrar com as crianças? Já pensou se tivesse que esperar por dezembro para deixar o espírito natalino ocupar os corações? Caso se esperasse as datas estabelecidas para se revelar a ternura, a vida seria muito burocrática, sem graça e sem afeto. Então, é necessário dar mais intensidade às manifestações de carinho para fazer valer a outorga que nos foi consentida – a vida!  Pois, a data de retorno é uma incógnita! Devemos considerar o que canta Ana Vilela – “Segura teu filho no colo / Sorria e abraça os teus pais enquanto estão aqui / Que a vida é trem-bala, parceiro / E a gente é só passageiro prestes a partir”.

O dia de abraçar o pai é hoje! Aliás, não só o pai! Abraçar qualquer pessoa que se tem intenção de abraçar! Não se deve postergar a manifestação de carinho e apreço!

Ouço com muita frequência pessoas falarem que queriam uma última oportunidade para abraçar algum ente querido que já retornou, como se a consciência não estivesse tranquila, por algum motivo. Eu não quero abraçar meu pai! Eu dei nele todos os abraços possíveis e imagináveis! Nós morávamos em cidades distantes e todas as vezes que eu ia visitá-lo, na despedida, nos abraçávamos e falávamos um para o outro – eu quero um abraço bem caprichado porque esse pode ser o último! Até que um dia foi!

O meu pai retornou aos 90 anos de idade, trabalhando, com independência e vivendo decentemente. A vida para alguém que viveu nessas condições foi um grande privilégio. O retorno nessa circunstância assemelha-se a uma coroação, um prêmio, para alguém que viveu dignamente. Por certo que, na condição de retorno inesperado ou quando ainda é muito jovem, fica o sentimento pelo abraço que não foi dado. Esse, portanto, não é o meu caso!

Eu carrego a sensação de todos os abraços e de todos os afetos compartilhados com o meu pai. Procuro sempre dar sentido ao que foi dito por Anabela Alcântara – "No dia de finados, prefiro visitar os vivos. Meus mortos já vivem dentro de mim"!

E sintam-se todos devidamente abraçados!

Arlicélio Paiva, professor doutor da UESC, Ilhéus, Bahia.