CONTOS

Isolamento

Cultura&Realidade - 23 de Abril de 2020 (atualizado 07/Mai/2020 16h08)

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Ilsutração

Alan Machado*

Depois de alguns minutos parado frente ao portão de casa, máscara sobre o nariz e a boca, ele resolveu desafiar o deserto silencioso da rua. Ao longe um cachorro investigava, faminto, uma lixeira matinal. De lado a lado, árvores farfalhavam ao sabor da fresca brisa que brincava no comprido corredor de paralelepípedos. A rua resistia à ausência de gente fazendo sua arborização dançar uma valsa, embalada pela corrente de ar. Os pardais estavam misteriosamente recolhidos. Num ponto ou outro, tinha-se notícia de um bem-te-vi, uma limeira ou um sanhaço qualquer se aventurando sobre um mamão maduro. O cheiro da caatinga recentemente molhada por uma forte chuva afetava a memória de forma intermitente trazendo lembranças de mulatinhas, quebra-facões e juremas. Um lagarto verde, esguio, cruzou o calçamento irregular logo à frente. Parou, olhou o mascarado fixamente por alguns segundos e disparou agitado, quase erguendo as duas patas dianteiras. A rua sumiu de seus sentidos por um momento vindo afetá-lo já na porta de casa, quando ouviu o rangido do portão se abrindo.

Nem havia percebido o salto do tempo. Não sabia se fora a algum lugar ou se simplesmente voltara do meio do caminho, tocado pelas sensações colhidas no vão solitário da rua. Talvez fosse apenas uma alucinação de quem atendeu ao pedido da razão ou ao medo antecipado da morte inscrito nos reclames públicos e particulares dos últimos vinte dias de isolamento social. A pandemia silenciara ruas e praças, fizera-o aguçar os sentidos e recuperar sons, cheiros, cores, gostos e texturas há muito ignoradas. Parece que o despedaçamento do ritmo da vida dissipara uma dormência necessária aos sentidos, instalada no corpo como forma de protege-lo da intensa e multiforme violência cotidiana.

Nada mesmo parecia ser como antes. Os olhos, os ouvidos e demais sentidos, acostumados à loucura veloz das exigências não sabiam o que fazer com tanta lentidão. As coisas lhe pareciam mais volumosas, os sons mais nítidos e contornados, os detalhes saltavam-lhe aos sentidos cobrando-lhe sentidos ignorados de tão esquecidos. As coisas passaram a lhe cobrar atenção a filigranas, como uma animação dos Studios Ghibli. Formigas passeando pelo balcão da cozinha. Passos noturnos de gatos no telhado. Cicatrizes nítidas jamais notadas na própria pele ou nas curvas do desejo, o tom de voz aveludado dela, arrepios, arrepios, demais...

Esse volume perceptivo, aflorado nos escombros da vida anterior estilhaçada pela pandemia e reclusa entre paredes, às vezes fazia-lhe subir uma sensação insuportável, um aperto, um corte respiratório inesperado acompanhado de ânsia de vômito. A vida esvaziada das malditas obrigações se enchia de tons inesperados e de sentimentos estranhos, de sabores e cheiros. Era muito sentimento para pouco tempo. Vinte e quatro horas soavam como um estalo sobre o inchaço dos sentidos. Uma caixa de latinhas de cerveja não apagava quase nada da sede imensa que o arrebatava. Esses sentimentos flutuavam como fragmentos de pensamento, foi o que concluiu agora diante do espelho do banheiro, fixando o olhar no rosto gordo, inchado de tudo. Aisthésis, estesis. É disso que nasce tudo. Até a arte nasce desse inchaço existencial que está para além do rosto no espelho. Deve ser por isso que nosso mundo mais mata do que cria. Sentir afeta e destroça semelhante ao amadurecimento de uma romã que culmina sempre com a explosão da armadura da casca, expondo, pelo esgarçamento, o ventre rubro, nutritivo e fértil do fruto.

Ligou o chuveiro frio, as gotas cristalinas brilhavam como nunca e feriam os olhos já espremidos. O barulho da água no chão, o arrepio das gotas correndo pelo corpo, o cheiro do sabonete infantil glicerinado. Através das paredes, o choro sofrido da vizinha, uma jovem senhora que enterrou a mãe e o irmão sem poder se despedir. O vírus sempre à espreita com sua fome de vida, com sua predileção por pulmões inchados, com sua tara por corpos agonizando sem ar. Um cheiro de café fresco invadiu o banheiro. Era isso que queria lembrar. Saiu para buscar os pães na padaria da esquina, mas nunca chegou lá ou nunca saiu. Caminhara apenas por dentro do seu mal-estar tentando vencê-lo. Passos, passos, passos... O café da manhã esperava lá no fundo da casa, sem vírus, mas também sem pão para enganar.  

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*Alan é professor de letras da Universidade Federal de Goiás (UFG).