ARLICELIO

E pur si muove

Cultura&Realidade - 23 de Abril de 2020 (atualizado 23/Abr/2020 17h18)

file-2020-04-23171423.813239-santa062d2afa-859f-11ea-b070-f23c917a2cda.jpg

Odiada e perseguida, com seus contemporâneos lançados vivos às fogueiras pela Santa Inquisição... a ciência, "pur si muove!" - Imagem: Ilustração

 

Arlicélio Paiva*

Durante muitos séculos as igrejas, principalmente a Católica, consideravam como blasfêmia e heresia qualquer pensamento que se opusesse aos ensinamentos da Bíblia. Vários cientistas foram castigados das mais diversas formas por acreditar nas suas descobertas e defender as suas teorias científicas. Inúmeros livros foram proibidos e, até mesmo, queimados, por conter informações que estavam em desacordo com o pensamento religioso. Nesse período ocorreu forte perseguição àqueles que acreditavam e defendiam a ciência.

Depois da Reforma Protestante que ocorreu na Europa Ocidental no século XVI, a Igreja Católica sentiu que o seu poder político e espiritual estava ameaçado. Assim, passou a se preocupar em manter o seu domínio. Nesse período, a Revolução Científica também estava ganhando prestígio e os fundamentos religiosos perdiam espaço para as observações mais atentas dos fenômenos naturais. Portanto, as perseguições aos cientistas e às suas ideias, que colocavam em dúvida muitos trechos da Bíblia, foi uma tentativa desesperada da Igreja em manter sua autoridade.

O matemático e astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1474-1543), considerado atualmente como o fundador da astronomia moderna, mantinha laços estreitos com a Igreja Católica, onde se tornou clérigo. Copérnico acreditava que a Terra não ficava parada; ela girava em torno de seu eixo diariamente e se movimentava ao redor do Sol, anualmente – heliocentrismo –, reforçando o pensamento dos intelectuais helenísticos nos tempos antigos. Em função da sua teoria, Copérnico foi considerado como herege tanto pela Igreja Católica quanto pela Protestante. Com a forte repressão e com a proibição do seu livro, Copérnico foi forçado a ficar por um bom tempo sem falar a respeito do que acreditava, embora jamais tenha desistido da ideia.

Biografía de Giordano Bruno » Quien fue » Quien.NET

Giordano Bruno - Queimado vivio pela Inquisiçã Católica

O italiano Giordano Bruno (1548-1600), um frade dominicano, foi perseguido e preso pela Inquisição da Igreja Católica, sendo obrigado a abandonar seu hábito religioso, por considerados erros teológicos e por defender que as estrelas são sóis cercados por planetas e luas e que o universo era infinito, indo além do pensamento de Copérnico. Como ele recusou a se retratar, foi amordaçado, conduzido à força para um local público, amarrado a um poste e queimado vivo na fogueira em 1600 na Itália, como herege. Atualmente, Bruno é reverenciado como um mártir do pensamento livre.

O também italiano Lucilio Vanini (1585-1619), frade católico e livre pensador, foi perseguido pela Inquisição, pois suas ideias foram consideradas como blasfêmia. Vanini acreditava que o universo era governado por leis naturais. Ele também era adepto da evolução biológica, acreditando que homens e macacos possuíam os mesmos ancestrais. Antes de ser queimado na fogueira, Vanini foi cruelmente torturado, teve sua língua arrancada e depois foi estrangulado. Essas atrocidades ocorreram em Toulouse na França em 1619.

Desde pequeno o alemão Johann Kepler (1571-1630) se interessou pela astronomia. Ele estudou teologia e foi professor de matemática e astronomia na Áustria. Kepler é mais conhecido por descobrir as três leis matemáticas do movimento planetário – Leis de Kepler. Ele também descobriu os padrões elípticos nos quais os planetas viajam ao redor do sol e defendia a teoria de Nicolau Copérnico de que os planetas orbitam o sol – heliocentrismo. Kepler era considerado como um luterano "não ortodoxo", razão pela qual era evitado pela Igreja Luterana. Seu sonho de se tornar pastor foi barrado por teólogos porque suas descobertas científicas entravam em contradição com certas partes da Bíblia. Ele foi proibido de defender suas ideias científicas em público porque transgredia o que estava escrito na Bíblia.

Talvez o caso mais conhecido seja o do italiano Galileu Galilei (1564-1642). Ele era considerado como um excelente aluno na escola do mosteiro e tinha interesse em se tornar monge. No entanto, o seu pai o obrigou a estudar medicina na Universidade de Pisa. Dois anos depois, ele abandonou o curso de medicina e passou a estudar matemática. Pressionado pelo pai, Galileu resolveu abandonar a universidade, onde passou quatro anos, sem concluir nenhum curso e mudou-se para Florença, onde deu aulas particulares e continuou a estudar matemática, aplicada à mecânica e à engenharia. Durante anos de estudos, Galileu fez várias descobertas nas áreas de física e matemática, como também, diversos inventos na engenharia.

Anos mais tarde, depois de ter contato com um tipo de telescópio rudimentar, ele desenvolveu outro mais potente e passou a estudar os corpos celestes. Depois de várias observações na área da astronomia, ele passou a defender com maior intensidade a teoria de Nicolau Copérnico de que o Sol era o centro do Sistema Solar, refutando a ideia vigente na época, defendida pela igreja, de que a Terra era o centro imóvel do universo – geocentrismo.

Em 1616, a igreja exigiu que Galileu abandonasse suas crenças científicas, incriminando-o por heresia. Em 1633, Galileu foi acusado pela Inquisição de não ter cumprido o que lhe foi imposto anteriormente, de que ele não devesse mais ensinar ou discutir o heliocentrismo. Durante o julgamento, Galileu foi ameaçado de tortura e negou que estivesse abordando o assunto; mesmo assim, foi condenado por heresia e forçado a renunciar publicamente às suas crenças na teoria corpenicana. O seu livro “Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo”, no qual ele apresentava argumentos a favor do heliocentrismo, foi proibido. Galileu foi condenado à prisão perpétua que, depois, foi convertida para prisão domiciliar e ele passou o resto de sua vida preso em uma vila florentina. Diz-se que, depois de ouvir o veredicto dos inquisidores, Galileu pronunciou: “E pur si muove” – “No entanto, ela se move” – referindo-se ao movimento da Terra ao redor do Sol, negado pela Igreja Católica na época.

A primeira constatação de arrependimento da Igreja Católica pela condenação de Galileu ocorreu em 1741, quando o papa Bento XIV o perdoou, autorizando a impressão de suas obras. Ressalte-se que o perdão deveria ser de Galileu e, não, da igreja. Em 1757, o mesmo Papa autorizou que se retirasse a proibição ao livro “Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo”. Em 1822, o Papa Pio VII permitiu que o livro que apoiava a teoria de Copérnico fosse impresso mais uma vez. Em 1979, o Papa João Paulo II criou uma comissão para analisar o caso de Galileu. Com base nas recomendações da comissão, em 1992 o papa declarou que a condenação de Galileu foi um erro trágico da igreja. Por último, em 2009, ano de comemoração do 400o aniversário do uso do telescópio por Galileu, a Igreja Católica anunciou mais uma vez ter cometido erro ao condená-lo.

O caso mais recente de tentativa de impedir a divulgação científica por motivos religiosos foi promovido pela Igreja Protestante no Estado do Tennessee, nos Estados Unidos, em 1925. John Scopes, professor de biologia do ensino médio de uma escola pública de Dayton, foi acusado de violar uma lei estadual que proibia o ensino da teoria da evolução das espécies de Darwin. A chamada “Lei Butler” declarou ilegal o ensino de qualquer fundamento que não reconhecesse os ensinamentos da Bíblia sobre a criação divina do homem.

O julgamento de Scopes teve grande repercussão na imprensa. O episódio ficou conhecido como “The Monkey Trial” que, em livre tradução para o português, significa “O Julgamento do Macaco”. A defesa e a acusação envolveram os dois principais juristas dos Estados Unidos da época. O professor Scopes admitiu ter ensinado o evolucionismo na escola e foi considerado como culpado, recebendo multa de 100 dólares, que equivale a aproximadamente 1.300 dólares atualmente.

Os estados que não pertenciam ao chamado “Cinturão Bíblico” consideraram como falta de bom senso a lei criada pelos fundamentalistas protestantes. Em 1927, a Suprema Corte do Tennessee anulou a condenação do professor Scopes, por considerar que ele havia sido multado exageradamente, mas manteve a constitucionalidade da lei. Depois de “O Julgamento do Macaco”, os Estados do Mississippi, Arkansas e Texas também aprovaram leis semelhantes. As leis que proibiam o ensino do evolucionismo nas escolas em vários estados americanos vigoraram até 1968, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos anulou a lei do Estado do Arkansas, por considerar que violava a Primeira Emenda da constituição.

Apesar das diversas tentativas que ocorreram a partir do século XVI, em nome das religiões, com o objetivo de proibir e punir os cientistas para que eles não mais abordassem assuntos que contrariassem a Bíblia, a ciência continuou a evoluir. Com o passar dos anos, os conflitos entre religião e ciência se abrandaram. Umas das teorias científicas mais polêmica dos últimos tempos, a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, teve apoiadores religiosos, embora a maioria deles tentasse desqualificar esse trabalho.

Atualmente, não se percebe grande relação entre religião e ciência. O país com maior percentual de cidadãos religiosos do ocidente – os Estados Unidos da América, com apenas 3 % da população composta por ateístas, – é também o país mais desenvolvido do ponto de vista científico e tecnológico.

Espera-se que o secularismo prevaleça nas instituições científicas, para que os defensores da religião não interfiram nos trabalhos dos pesquisadores. Embora alguns terraplanistas ainda estejam ornejando por aí e alguns religiosos insistam para que o criacionismo sobressaia em detrimento do evolucionismo, a ciência continua a se movimentar. Como muito bem poderia dizer Galileu, apesar dos percalços, “E pur si muove” – “No entanto, ela – a ciência – se move”!

 

Arlicélio Paiva, professor doutor da UESC, Ilhéus, Bahia.