ALAN MACHADO

Bolsonaro não tem direito à privacidade absoluta, ninguém tem

Cultura&Realidade - 11 de Maio de 2020

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Iustração

Os grandes jornais noticiaram dias atrás que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, suspendeu a entrega dos exames de coronavírus feitos pelo Presidente Bolsonaro e solicitados pelo jornal Estado de São Paulo. A argumentação sustentada pelo ministro para encaminhar o veto à divulgação dos laudos laboratoriais é ridícula e causaria vergonha a qualquer estudante de direito, a começar pelo açodamento dos motivos alegados, que reduzem a questão ao estrito plano privado, isolando-a dos motivos reais que revelam a importância da sua publicidade.

Querer justificar direito à intimidade e à privacidade, como fundamentos para não entregar os exames, como faz o ministro, é negar que existam direitos maiores com os quais um presidente tem de lidar e responsabilidades ainda maiores que o cidadão Jair Bolsonaro assumiu ao ocupar a Presidência da República...

...Obviamente, Bolsonaro tem seus direitos individuais de cidadão. Ninguém está pedindo para ver as imagens do exame de próstata dele (só pra não esquecer as fixações bolsonarianas). Mas não há como preservar a privacidade individual, no cargo de presidente, em sua totalidade.

Aceitar que seja possível é concordar que um funcionário público tem direito de virar as costas para os cidadãos que estão à espera do seu atendimento para tratar de assuntos privados nas redes sociais do seu celular. Se Bolsonaro quer ter a vida privada e a intimidade totalmente protegidas, basta sair do Planalto e dispensar inclusive todo o aparato de segurança e de luxos pessoais que o lugar público de presidente lhe garante. Basta sair da vida pública e seguir uma vida ilibada de cidadão comum.

Numa democracia, quando se exige que um presidente mostre o resultado de um exame pessoal não é porque se quer saber da intimidade dele, pensar assim é primário demais. Só se exige porque a privacidade da informação coloca em risco os cidadãos do País. O presidente faz campanha aberta contra uma pandemia, cujos lastros catastróficos são inegáveis em todo o planeta e não o faz inadvertidamente. Ignorou e debochou das orientações de órgãos mundiais de saúde e de pesquisas científicas sérias e ainda desrespeitou as diretrizes políticas e os protocolos do seu próprio Ministério da Saúde. Mais grave: demitiu o ministro por estar fazendo o trabalho em sintonia com a ciência e com os protocolos de saúde testados e adotados no mundo inteiro.

O contrassenso de a justiça ficar contemporizando os desacertos do presidente é que estão aí, noticiadas nos jornais de todas as línguas, para todo mundo ver ou ler, as pilhas diárias de mortos, sistemas de saúde em colapso e economias estraçalhadas como provas inegáveis de que ele está errado. Mas o chefe do executivo, numa atitude insana, segue ignorando a realidade e continua trabalhando contra os fatos. Nisso age criminosamente: não usa máscara, provoca aglomerações, apoia manifestações de rua e participa dessas aglomerações, desrespeitando a racionalidade e o decoro que o homem público, líder executivo, deveria zelar.

Os mais de 10 mil mortos contabilizados até então tinham CPFs e títulos de eleitores, decerto. Eles cumpriam seus deveres públicos e quando não cumpriram o Estado certamente foi lá invadir a sua privacidade para impor sansões, para castigá-los. Ou cortou a água ou a luz ou suspendeu contas bancárias etc. Nesse caso, as atitudes do Estado estão corretas, as violações pessoais das regras públicas podem ser nocivas para a sociedade como um todo e devem ser punidas e corrigidas pelo Estado. Não tenho dúvidas de que o presidente do STJ concorda comigo. Só não entendo porque para ele Bolsonaro, com atitudes muito mais nocivas do que uma pequena omissão individual no imposto de renda ou um atraso de pagamento de contas, deve ser excluído dessa regra.

Todo mundo sabe que Jair Bolsonaro estava contaminado por covid-19. O próprio filho, Deputado Federal Eduardo Bolsonaro, confirmou isso para a Fox News, rede de TV conservadora do amado país dos Bolsonaro. Quando percebeu que estava criando provas contra o pai presidente, tentou desmentir e foi desmoralizado pela Fox News. Diante do óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, e na condição de cidadão, estou querendo saber qual então é o interesse do senhor Otávio de Noronha em advogar contra o País e se acumpliciar com as milhares de mortes ocorridas e com as que ainda estão por vir.

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Alan Oliveira Machado. Professor do Curso de Letras na Universidade Estadual de Goiás, UEG- Iporá. Doutor em Educação pela UFG.